Disciplina - História

História

13/11/2007

Depoimentos de Arqueólogos pioneiros: Igor Chmyz, do Paraná

por Igor Chmyz
A Coleção Caminhos da Arqueologia propõe publicar depoimentos de professores, profissionais e pesquisadores da Arqueologia no Brasil, registrando a memória de significativos percursos em diferentes áreas, apontando suas referências, motivações, métodos, produtos, dificuldades e possibilidades de desenvolvimento. Cada volume dedica-se a uma área de atuação, colocando questões comuns a todos os “entrevistados” de modo a oferecer textos minimamente homogêneos e comparáveis, mas também relacionados a questões particulares a cada entrevistado. Os depoimentos serão publicados em forma de livro e divulgados, para maior facilidade de acesso, no site www.historiaehistoria.com.br.

O que motivou sua opção por essa área de trabalho/pesquisa?
Creio que foi vocação. Desde a infância sentia atração por tudo que se relacionasse ao meio-ambiente. Ao participar de piqueniques com meus pais nos arredores de União da Vitória (PR), minha cidade natal desde 3/11/37, sempre voltara com amostras de plantas e rochas e, com elas, montava exposições no quintal de casa. Era, na verdade, um pendor para a pesquisa.
Na adolescência, com meus colegas de escola, fazia excursões nas margens do rio Iguaçu ou morros das cercanias, produzindo relatórios ilustrados que ainda conservo. As cavernas e abrigos lá existentes eram palmilhados na expectativa de que neles houvesse vestígios arqueológicos. Na época, ao freqüentar as poucas bibliotecas da cidade, os livros que mais atraíam a minha atenção eram os de ciências humanas, especialmente os raros de arqueologia e antropologia. Comprei os famosos “Deuses, túmulos e sábios”, de Ceram, e “A Bíblia tinha razão”, de Keller.
Relatos dos meus avós maternos, imigrantes da Ucrânia, certamente alimentaram o meu imaginário com relação às populações indígenas. Minha avó, quando criança, quase foi raptada por índios Jê. Meu avô, marceneiro da rede ferroviária em implantação e encarregado da construção das primeiras estações, contava que havia serrado, em várias ocasiões, flechas cravadas nos corpos de operários das frentes de trabalho.
Vi vagões carregados de conchas retiradas de “cemitérios indígenas”, como me explicavam, que eram utilizadas para o revestimento das ruas, assim como pontas de flechas extraídas do leito do rio pelos exploradores de areia e que eram por eles atribuídas aos índios antigos.
Acredito que essas impressões contribuíram para o meu direcionamento à profissão que abracei, em detrimento da geologia ou botânica e, principalmente, em detrimento da medicina, a carreira para mim projetada pela família. A minha decisão foi traumática porque ocasionou, por algum tempo, a ruptura. Não contando com o apoio familiar nos anos seguintes e, mesmo me beneficiando de uma universidade pública para minha formação, tive de lutar para sobreviver. Encadernava livros para particulares e bibliotecas, inclusive a do Museu Paranaense, os quais hoje consulto e vejo que ainda estão em boas condições. Minha mulher trabalhava em gráfica, reforçando o orçamento.

Quais as circunstâncias de seu ingresso na área?
Ao concluir o científico, passei alguns meses em Apucarana (PR), ajudando meu tio na resolução de problemas que tinha no seu cartório. Acompanhando-o em uma das excursões que fazia pelas matas do Paraná em 1958, tive a oportunidade de ver e sentir as ruínas de Ciudad Real Del Guayrá, fundada pelos espanhóis na margem do rio Paraná em 1557. Elas estavam, ainda, cobertas pela densa floresta. Não havia estradas; o local foi acessado de barco, pelo rio.
Retornando, depositei as peças recolhidas em Ciudad Real no Museu Paranaense. Recebeu-me o prof. Oldemar Blasi, que lá trabalhava com o arqueólogo Wesley R. Hurt Jr. e alunos do curso de formação promovido pelo Centro de Ensino e Pesquisas Arqueológicas (CEPA), da Universidade do Paraná. O sítio-escola do curso foi o Sambaqui do Macedo, localizado em Paranaguá (PR). Percebendo meu interesse pela arqueologia, o prof. Blasi informou-me que no ano seguinte estaria coordenando pesquisas programadas pelo CEPA nas ruínas de Villa Rica del Espíritu Santo, sítio pertencente ao mesmo contexto histórico de Ciudad Real, e adiantou-me que, caso o prof. dr. José Loureiro Fernandes, seu diretor, autorizasse, delas poderia participar. Isso aconteceu e tive a oportunidade, durante um mês, de trabalhar em escavações, coleta de dados e levantamento topográfico. Começamos, também, as escavações em um sítio Tupiguarani nas proximidades. Cheguei a localizar, na mesma ocasião, um sítio lítico, denominado Riacho Pequeno, no qual, nos finais de semana, aplicava os conhecimentos que estava adquirindo. Publiquei o resultado dessa abordagem em Pesquisas-Antropologia n. 13, em 1962.
Pouco antes da pesquisa de Villa Rica, Blasi, Hurt e José Wilson Rauth visitaram um abrigo-sob-rocha que havia localizado em 1955, na região de União da Vitória; escavei esse sítio nos anos seguintes.
Depois da etapa de campo em Villa Rica, estagiei voluntariamente no Museu Paranaense, trabalhando com restaurações, análise do acervo recolhido e confecção de ilustrações para publicações. Além dessas atividades internas, desenvolvi outras de campo, acompanhando o prof. Blasi. No então distrito de Itaperuçu, nos arredores de Curitiba, encontramos um abrigo que fora ocupado por ceramistas diferentes daqueles constatados anteriormente nos vales do Ivaí e Paraná. Se as evidências recuperadas tivessem sido estudadas, a definição da tradição Itararé seria antecipada em seis anos.

Quais as principais referências de início de carreira?
O estágio que desenvolvi no Museu Paranaense propiciou-me valioso contato com a equipe do curso coordenado por Hurt que, além dos já mencionados, incluía Margarida Davina Andreatta, Maria José Menezes e Maria da Conceição de Moraes Coutinho. Conheci a arqueóloga francesa Annette Laming que se preparava para coordenar outro curso do CEPA, desta vez junto ao sítio José Vieira, no planalto paranaense. Seu marido, o arqueólogo Joseph Emperaire, havia morrido no ano anterior, durante pesquisas que realizavam na Patagônia Chilena.
Tive a oportunidade, também, de conversar muitas vezes com o prof. Loureiro. No ano seguinte fui por ele convidado para permanecer no CEPA, na época instalado em uma sala entre os departamentos de História e Antropologia, no edifício da Faculdade de Filosofia. Concedeu-me uma bolsa do CEPA, o que me possibilitou dedicar mais tempo aos estudos. Passei a ajudá-lo nas exposições do seu departamento e na montagem do Museu de Arqueologia e Artes Populares no antigo Colégio dos Jesuítas de Paranaguá.
Embora tenha participado com o prof. Blasi de mais uma etapa de campo em Villa Rica, em 1960, quando foram concluídas as escavações no sítio J. Lopes, recebi apoio do prof. Loureiro para retornar aos sítios da região de União da Vitória, para escavá-los. Retornei, também, às ruínas de Ciudad Real, realizando escavações e levantamento topográfico da sua malha urbana.
Iniciei o meu curso de Geografia e História, na então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade do Paraná. Paralelamente, por deferência do prof. Loureiro, assistia as aulas dos cursos do CEPA, que eram em nível de pós-graduação. Eu já havia assistido as últimas aulas do curso de Hurt. Assim, absorvi as lições de Hurt, Annette Laming, Blasi que também dava aulas no CEPA, João José Bigarella, Riad Salamuni, Luiz de Castro Faria e Peter Paul Hilbert, entre outros. Beneficiei-me, ainda, de curtos cursos de atualização dados por visitantes, como: Pedro Bosh Gimpera, Raoul Hartweg, Emilio Willems e Juan Comas. Recebi orientações de Fernando Altenfelder Silva, Helbert Baldus, José Maria Cruxent, Osvaldo Wenghin e Virginia D. Watson, quem primeiro trabalhou em Ciudad Real.
No ano de 1962 o prof. Loureiro convidou-me para uma viagem ao Rio Grande do Sul. Em Caxias do Sul prospeccionei uma habitação subterrânea e um abrigo com vestígios de práticas funerárias (um sítio cemitério). Conheci, em Porto Alegre, o prof. Pedro Ignacio Schmitz.
Meus primeiros trabalhos foram publicados em 1962 e 1963, em Pesquisas-Antropologia, Runa e Revista de História, enfocando o sítio Riacho Pequeno, os sítios de Caxias do Sul e Ciudad Real, respectivamente. São de 1963, também, as publicações sobre os sítios da região de União da Vitória, nos Anais da 6ª Reunião da ABA e J. Lopes, no Boletim Paranaense de Geografia, em colaboração com o prof. Blasi.
Em 1964, já formado, participei do curso coordenado por Clifford Evans e Betty Megers, cuja tônica foi o Método Ford. Este curso havia sido cogitado pelo prof. Loureiro desde 1954, mas não implementado porque não havia alunos capacitados para assimilar aquela metodologia. Sítios que registrei em 1964, durante pesquisa em área ampla no Vale do Paranapanema, serviram de base para as análises laboratoriais e para a definição da fase Cambará. Do curso resultou uma pesquisa financiada pelo Smithsonian Institution e apoiada pelo CNPq e Iphan, que foi desenvolvida em vários Estados brasileiros, entre 1965 e 1970. Integrei esse Programa Nacional Pesquisas Arqueológicas (Pronapa), trabalhando em trechos que selecionei no Paraná, São Paulo e Mato Grosso do Sul.
Acompanhei ainda, os cursos de 1966 e 1973, ambos coordenados por Annette Laming-Emperaire.
As aulas dos cursos mais antigos eram preparadas pelos professores e distribuídas mimeografadas. Nos mais recentes, textos xerocopiados eram disponibilizados para os alunos. A biblioteca do CEPA dispunha de vários livros, como os de M. Wheeler, V. G. Childe, C. Arambourg e L. Pericot y Garcia, além de periódicos, entre os quais American Antiquity. Terminologias produzidas pelos participantes dos cursos, para a cerâmica e o lítico, foram publicadas.
Em 1964, ainda, como instrutor voluntário, passei a ensinar arqueologia para diversos cursos da Universidade, e comecei a formar equipes. Posteriormente, aprovado em concurso público, assumi essa função à qual me dediquei ininterruptamente até hoje. Doutorei-me na USP, em 1973. Foram meus orientadores e/ou examinadores os professores João Baptista Borges Pereira, Ulpiano Bezerra de Meneses, Eurípedes Simões de Paula, Egon Schaden e Erasmo D’Almeida Magalhães. Este substituiu o prof. Loureiro que, adoecendo, não pôde compor a banca.

E as principais referências na carreira como um todo?
Além da atividade didática na Universidade, lecionando disciplinas de antropologia e arqueologia à princípio e depois só as de arqueologia, dediquei a maior parte do meu tempo à pesquisa de campo e laboratório. Todos os meus períodos de férias foram empregados no campo. Fora os Estados já mencionados, com a equipe do CEPA trabalhei em outros situados na Amazônia. Em Minas Gerais, dois grandes projetos ligados a hidrelétricas foram executados.
Assumi, em 1966, em substituição ao prof. Loureiro, a direção do CEPA. Embora seja avesso à função administrativa, exerci em algumas ocasiões a chefia do Departamento de Antropologia, coordenação de cursos de graduação e pós-graduação e, interinamente, a direção do Museu de Arqueologia e Artes Populares.
Representei o Iphan, entre 1968 e 1988, nos assuntos de arqueologia no Paraná.
Fora da Universidade, tenho colaborado com instituições culturais e científicas, participando de conselhos.

Quais os seus procedimentos de trabalho / pesquisa?
Na minha formação recebi influência das chamadas “escolas” francesa e americana. Não tive a oportunidade de ouvir o iugoslavo Adam Orssich, mas da sua metodologia interei-me recorrendo à sua correspondência e relatórios arquivados no CEPA. Estes, inclusive, foram por mim editados, em 1977, nos Cadernos de Arqueologia de Paranaguá. Algumas conclusões de Orssich para o Sambaqui escavado em 1952, em Guaratuba (PR), especialmente a relacionada a evidências de fundos de cabana naquele sítio, foram duramente criticadas na época, como se pode ver no artigo publicado por Paulo Duarte, nos Anais do 31º Congresso de Americanistas.
Com relação às “escolas”, acho que se complementam dependendo do enfoque da pesquisa. Escavei sítios acompanhando a estratigrafia natural, como em habitações subterrâneas, e outros por meio de níveis arbitrados.
Sempre procurei delimitar as áreas das ocorrências, registrando-as como sítios, embora, em muitos casos, depois das análises laboratoriais e da construção das seqüências seriadas, tenha-se verificando que comportavam várias ocupações da mesma tradição arqueológica, temporalmente separados.
Ao enfocar uma área de pesquisa, minha preocupação sempre foi o registro de todas as evidências de ocupação pretérita; nunca privilegiei sítios líticos em detrimento dos cerâmicos ou de qualquer outra natureza. A pesquisa feita em área ampla possibilita a periodização da sua ocupação. Isso já havia feito no vale do Rio Vermelho, cuja publicação data de 1963.

Quais suas principais contribuições para a área no Brasil?
Durante as comemorações programadas para o cinqüentenário do CEPA, em 2006, foi produzido um mapa assinalando os sítios arqueológicos registrados e/ou pesquisados pela casa nos Estados do Paraná, São Paulo, Mato Grosso do Sul e Santa Catarina. Nele figuram 1.351 sítios; na representação não foram considerados os sítios que perderam o potencial informativo, embora suas ocorrências tenham sido coletadas e anotadas em mapas regionais.
Grande parte dessa produção é resultante de abordagens realizadas em ritmo de salvamento em áreas que foram submersas ou modificadas em seguida. Mesmo aquelas áreas vinculadas ao Pronapa ou a outros projetos que não dependiam dos rígidos cronogramas físicos de obras, hoje podem ser considerados como trabalhadas em ritmo de salvamento. A degradação ambiental, as práticas agro-pastoris e agro-industriais entre outras atividades antrópicas processadas, ocasionaram danos ao patrimônio arqueológico constatado inicialmente.
Em espaços que foram pesquisados na década de 1960 no vale do Paranapanema, por exemplo, ainda com porções de mata entre os cafezais, sítios eram encontrados em boas condições de conservação. Novos trabalhos neles executados nas décadas de 80 e 90, em função de estudos de impacto ambiental ou salvamento, evidenciaram o que acima comentei. Pesquisas desenvolvidas em um daqueles trechos em 2006, em decorrência da instalação de usina de açúcar e álcool, revelou um quadro ainda mais preocupante. As prospecções abrangeram a área da unidade processadora e a de plantio de cana-de-açúcar e evidenciaram 26 pontos com ocorrência de material arqueológico. Deles, apenas 9 puderam ser registrados como sítios e, mesmo assim, sem que apresentassem o potencial informativo que norteava o cadastramento de sítios daquele trecho nos anos 60.
A que conclusão poderia chegar um jovem arqueólogo pesquisando esse espaço em 2006, sem os referenciais obtidos nas décadas anteriores? Antes, quando os sítios ofereciam boas condições de pesquisa, os recursos para tal eram escassos; hoje os recursos existem, principalmente em conseqüência do aperfeiçoamento legislativo, mas o objeto da atividade foi destruído ou diminuído na sua potencialidade informativa.
Se contribui com algo para a arqueologia brasileira, além dos dados que tenho fornecido nas publicações, creio que foi na questão do salvamento. Em 1964, ao atender ocorrências na foz do Itararé com o Paranapanema, constatei na área da UHE Salto grande, sítios temporariamente emersos no seu reservatório. Constatei, também, que as obras da UHE Xavantes estavam em andamento, comprometendo sítios em trechos daqueles rios. Tentei, junto aos empreendedores, o patrocínio do salvamento. Diante da recusa, consegui sensibilizar o diretor do Iphan, que obteve do MEC os recursos necessários para o início do projeto. A conclusão das pesquisas dependeu de recursos do CEPA.
Em 1965 sofri outra recusa de financiamento de projeto pelos promotores de UHE Salto Grande, no rio Iguaçu; o salvamento foi executado novamente com recursos do CEPA.
Para o desenvolvimento dos projetos seguintes (p. ex.: UHE Itaipu, UHE Salto Santiago e UHE Foz do Areia), adotei estratégias que não deixavam margem argumentativa para os empreendedores, algo parecido com o diagnóstico de áreas nos estudos de impacto ambiental agora praticado. Obtive os financiamentos, mas poucas vezes consegui que os empreendedores custeassem, além das atividades de campo, os trabalhos de laboratório e a publicação dos dados e conclusões. Esta é uma situação comum e preocupante na questão do salvamento, ocasionando uma defasagem entre a obtenção dos dados e a divulgação dos resultados.
O monitoramento feito em 1964 na área da UHE Xavantes e que me direcionou para as pesquisas de salvamento, repetiu-se em outras hidrelétricas nos anos seguintes. Agora sabemos o que acontece com sítios submersos há mais de 50 anos. Apresentei algo sobre essas atividades complementares ao salvamento durante a reunião da SAB em 2001; em 2003 o Iphan baixou a Portaria nº 28 tornando obrigatório o monitoramento arqueológico.
A realidade dos salvamentos arqueológicos no Brasil antes da edição da Resolução nº 001/86, do Conama, foi tema de uma comunicação que apresentei durante uma reunião sobre a arqueologia de resgate em Dallas, em 1984. Contribuíram para essa avaliação poucos arqueólogos brasileiros que ao tema se dedicavam. A maioria o execrava na época, inclusive muitos dos que hoje a ele se dedicam inteiramente.

Fonte: História e História, UNICAMP, 06 de novembro de 2007
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