Disciplina - História

Duas décadas após queda do muro, comunismo se mantém vivo como utopia

por Daniel Buarque

Maior símbolo do fim da Guerra Fria e do conflito entre Estados Unidos e União Soviética, a queda do muro de Berlim já foi apontada por historiadores como o “fim da história”, um momento de triunfo incontestável do capitalismo. Vinte anos após o colapso do bloco soviético, entretanto, pesquisadores do socialismo apontam que a utopia continua viva e que há ao menos cinco países no mundo atual seguindo a cartilha do comunismo, ainda é vista como símbolo de esperança.
A queda do muro de Berlim foi um momento muito simbólico do fim do comunismo na Europa, mas não acabou com o comunismo no mundo, explicou o cientista político britânico Archie Brown, professor da Universidade de Oxford e autor de “Rise and Fall of communism” (‘Ascensão e queda do comunismo’, livro de quase 800 páginas que deve ser lançado em breve no Brasil). “Existem 5 países comunistas no mundo atual. China, Vietnã, Laos, Coreia do Norte e Cuba”, disse, em entrevista ao G1.
A manutenção dos sistemas ligados ao comunismo, entretanto, passou por diferentes processos de adaptação para sobreviver às duas últimas décadas. Enquanto os três primeiros países citados caminharam no sentido de ter uma economia de mercado, os outros dois se mantiveram fechados ao resto do planeta. “A China especificamente não pode mais ser considerada um pais comunista economicamente, mas politicamente, sim, pois ainda mantém o monopólio do poder sob o partido comunista, hierarquia e centralismo. O país mais stalinista e fechado é a Coreia do Norte.”

O comunismo no século XXI
O motivo de o socialismo ter sobrevivido ao fim da União Soviética, que apoiava os regimes similares em vários países, é o desejo de buscar o “mundo perfeito”, a utopia, segundo o historiador Richard Pipes, autor de “O comunismo” e mais de 20 outros livros sobre história da Rússia e da união Soviética. Segundo ele, entretanto, a prática não consegue seguir o modelo sem restrição de liberdades, o que acaba fazendo o sistema não funcionar.
“O ideal socialista é utópico e sempre sobrevive, pois as pessoas gostam de acreditar que é possível. Não concordo que seja possível na prática, e por isso um sistema comunista sempre vai fracassar em algum momento. Os sistemas sobrevivem apenas com mão de ferro, retirando as liberdades e descobrimos que as pessoas sofrem dentro desses sistemas, o que tira a credibilidade”, explicou, em entrevista ao G1, reiterando que as pessoas gostam de acreditar que a utopia é possível. O mesmo ponto foi reforçado pelo pesquisador inglês, que argumenta que o socialismo continua existindo como ideologia da esperança.

Teoria e Prática
Sob o aspecto da adaptação dos regimes e da busca por esta utopia, Brown explicou que nunca houve na prática política um regime que seguisse as propostas comunistas conforme pensadas por Karl Marx e por Lênin. “Marx e Lênin detalharam muito pouco sobre o sistema político e as instituições que existiriam em um pais socialista, o que deixou muitas questões em aberto. Os países tiveram que desenvolver suas próprias instituições. Mesmo assim pelo que vimos nas tentativas comunistas na prática não pareciam nada com os ideais propostos originalmente.”
Nas entrevistas, os dois historiadores enfatizaram a importância de diferenciar os regimes ditatoriais comunistas e o socialismo dito “light”, suave, implementado em países da Europa por grupos da social-democracia. ;Precisamos diferenciar comunismo de socialismo, pois o segundo pode estar incluído em democracias, como a social-democracia, enquanto o primeiro, não. A Europa teve muitos governos social-democratas. No comunismo, não se permitem vozes contrárias ao regime”, disse Pipes.
Brown detalhou que o socialismo pode funcionar em algumas sociedades democráticas, desenvolvendo projetos de forma paralela e funcional. “No comunismo, não, a democracia não funcionaria, e sempre que se tentou adaptar isso, o regime caiu. O socialismo em social-democracias tem avançado até hoje na Europa, como aconteceu até na Espanha. São ideologias que têm menos intervenção estatal, mas buscam uma maior igualdade, e que podem ser consideradas exemplo de esperança”, disse.
Segundo Brown, o ponto mais alto do comunismo, entre a ascensão e a queda do bloco soviético, ocorreu logo antes do rompimento entre China e URSS, entre o fim dos anos 1950 e o começo dos 60. “Aquilo enfraqueceu o comunismo no mundo. Até o inicio dos anos 70, pode ser considerado o auge da União Soviética, pois tinha um poderia militar equivalente ao dos Estados Unidos, podendo destruir o capitalismo tanto quanto os EUA poderiam destruí-la. O problema é que era preciso que o regime destruísse a si mesmo, como aconteceu, e não adiantaria o governo do ocidente tentar derrotar o leste pela força.”

Chávez e Obama
Além dos cinco países citados como exemplos de comunismo no mundo atual, dois outros movimentos políticos recentes chamam a atenção dos pesquisadores. Por um lado, há o exemplo venezuelano, em que o presidente Hugo Chávez propõe a implementação do que chama de bolivarianismo, ou socialismo do século XXI. Por outro, nos Estados Unidos, nação símbolo da vitória do capitalismo, o presidente Barack Obama passou o primeiro ano do seu governo sendo atacado por setores mais conservadores da oposição republicana como se estivesse tentando implementar o socialismo no país.
Para Pipes, que pesquisou mais a fundo os exemplos de comunismo na Europa, o que Chávez está fazendo é implementar um regime socialista, comunista tradicional. “Não há nada de século XXI no que ele está fazendo e trata-se de um experimento que só funciona porque ele tem acesso a grandes quantidades de petróleo. Sim, é um regime de ideal comunista que se tenta implementar na Venezuela.” Ele ressaltou que as economias comunistas e socialistas normalmente não são muito funcionais, mas o venezuelano consegue manter o país por causa da receita gerada pelo “ouro negro”, que mantém a economia.
Quanto ao exemplo norte-americano, “é absurdo dizer que Obama é socialista”, disse o cientista político britânico. “Socialismo se tornou um xingamento dos conservadores norte-americanos, por isso ele é chamado dessa forma. Ele não é socialista por ter ajudado o capitalismo a se recuperar, foram essas ações que chamaram de socialista, mas é muito pelo contrário. É verdade que ele é um presidente mais à esquerda, mas não chega a ser socialista.”
Mais crítico, Pipes disse acreditar, sim, que o presidente dos Estados Unidos tem tendências socialistas, mas admitiu ser impossível implementar um projeto desse tipo no país. “Obama é um tanto socialista. Ele acredita que a igualdade social é mais importante de que a liberdade. É difícil provar isso, mas seus discursos e seu histórico devoto no senado indicam que ele provavelmente simpatiza com o socialismo. Ele não vai conseguir aprovar um programa socialista, entretanto, pois a sociedade não aceitaria, tanto que ele está perdendo apoio nos EUA.”

Continuação da história
A sobrevivência do socialismo e as mudanças no planeta nas últimas duas décadas se voltaram contra a tese do historiador Francis Fukuyama de que se havia chegado ao Fim da História com a queda do Muro de Berlim. Em entrevista ao G1, o pesquisador britânico Frederick Taylor, autor de “Muro de Berlim”, uma das obras mais completas sobre o assunto, defendeu a tese de Fukuyama de que a solução marxista fracassou, mas apontou os rumos para a “continuação da história”.
“A queda do muro representou a vitória do capitalismo, que parecia um triunfo final em que todo o mundo rumava na mesma direção. Não acho que isso seja mais verdade 20 anos após a queda do muro. Fukuyama estava certo, entretanto, ao dizer que o comunismo tinha perdido, e a solução marxista para o mundo havia fracassado, fazendo com que qualquer solução para o mundo precisasse vir da proposta capitalista. Não sei dizer se isso é verdade no longo termo. Ele ignorou o que a China mostrou recentemente, que é possível ter uma ditadura comunista ser bem sucedida como um país industrial capitalista. Isso é novo e único.”
Mesmo sem uma alternativa comunista e prática, os pesquisadores indicaram que os rumos do capitalismo também estão se transformando em várias partes do mundo. O sistema que “triunfou” há duas décadas passou por mais uma profunda crise nos últimos meses e mesmo não correndo risco de ser derrotado, está buscando uma face mais moderna e adaptada também à “esperança” de que tratava a utopia comunista.
Fonte: G1
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