Disciplina - História

História

05/04/2011

Primavera dos povos árabes

Ronaldo Pelli - Revista de História da Biblioteca Nacional
“Desculpe, mas Kadafi é mau.” Foi assim que o professor Francisco Carlos Teixeira, coordenador do Laboratório do Tempo Presente da UFRJ, resumiu sua opinião, após ser questionado se não haveria uma demonização excessiva por parte da mídia do ditador líbio Muamar Kadafi. Ele participou junto com os também professores Michel Gherman (UFRJ) e Murilo Sebe Bon Meihy (PUC) de um debate no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (UFRJ), no Centro do Rio, sobre as revoltas árabes, que acontecem em sequência. Teixeira lembrou de algumas atrocidades cometidas por Kadafi como enterrar adversários vivos e foi logo completado por Meihy, especialista nos países árabes, que lembrou de casos de estudantes opositores ao regime líbio que foram enforcados no pátio da própria universidade onde estudavam. “O ataque dos ocidentais não faz Kadafi bom”, afirmou Teixeira, que lembrou que numa guerra civil não há vilões ou inocentes.
Os três pesquisadores foram unânimes ao reconhecerem a originalidade dessas revoltas em relação a qualquer outro processo que se tenha conhecimento, o que foi até motivo de surpresa por parte da academia, a diplomacia e, consequentemente, a mídia, do chamado Ocidente. Teixeira lembrou que esses movimentos são completamente diferentes, por exemplo, da revolução islâmica do Irã, em fins de 1970, quando ao cair o ditador (no caso o Xá Reza Pahlavi) subiu ao poder um grupo de religiosos extremistas. Segundo Teixeira, há, sim, um componente religioso na revolta, principalmente ao se lembrar o contexto muçulmano. Os manifestantes pararam para rezar durante os protestos na Praça Tahir, no Cairo, mas em nenhum momento as questões religiosas se tornaram exigências dos manifestantes. Para Teixeira, no Irã, o processo de recrudescimento da religião já era claro antes mesmo da revolução, com atentados terroristas a bomba em áreas consideradas ocidentais, como lojas que vendiam vinis.
Até mesmo a mulher, relegada a um segundo plano nas sociedades árabes mais machistas, podia participar de todas as manifestações, só não podendo dormir na própria praça. O professor Gherman, que estava em Israel quando estourou a primeira revolta, na Tunísia, acrescentou que as mulheres iam à Praça Tahir (“liberdade” em árabe) sem véu, algo impensado dentro dos clichês associados aos muçulmanos. Além das mulheres, os conflitos tinham a participação de cristão-coptas nas manifestações e, segundo ele, houve até o caso de uma jovem que citou, em entrevista à televisão, os judeus como aliados. O professor Meihy adicionou que um dos maiores derrotados com essas revoltas foram exatamente os grupos de ativismo islâmicos, que estão há décadas tentando se aproximar do poder, mas não tinham uma liderança clara. Esse processo, ele explicou, deveria acabar com a “paranoia” de imaginar que ao cair um ditador subiria um ainda pior em seu lugar.
O professor especializado nos países árabes sugeriu que os EUA e Israel deveriam repensar suas estratégias para a região, já que foram colocados à margem das questões. Já Gherman disse que os jornais judaicos e árabes retrataram a revolta da Tunísia com pouco destaque. O professor defendeu a ideia de que o conflito Israel e Palestina, sempre o principal destaque da região, ficou na periferia do debate. Para Gherman, o motivo dessas revoltas em série, diferentemente do panorama antigo em que Israel sempre estava no centro das discussões, é simplesmente a busca de uma vida de qualidade melhor. Ele argumenta que essa nova formulação mostra como é inevitável, para Israel, ver o mundo árabe como um parceiro. Porém, Gherman não é otimista em relação a uma mudança de comportamento do Estado israelense, controlado por um partido de direita, que se autoalimentaria do conflito com a Palestina, comandada pelo grupo Hamas, outro beneficiário desse confronto. Segundo Gherman, o governo israelense não dialoga nem mesmo com a esquerda, não vê o outro e repete o pensamento de que o “mundo atual é islamizado”.
Não foram só os jornais que trataram os conflitos com pouco destaque. Como Teixeira explicou, a mídia repercutiu a opinião generalizada de acadêmicos e do corpo diplomático, principalmente da Europa. Segundo ele, as análises da mídia erraram quando imaginavam que as revoltas não teriam efeito dominó; quando se sugeriu que era melhor manter o regime antidemocrático, com medo de uma revolução em que os fundamentalistas islâmicos assumem os papéis principais dos governos; ou quando se assegurava que não haveria revolta porque o mundo árabe não teria vivência estrutural dos movimentos para a democracia: ou seria o caos total ou um grupo extremista se lançaria para tomar conta do país. Ele citou o jornal francês “Le Monde” que, sobre a questão tunisiana, cravou em uma de suas manchetes que seria uma revolta, mas não uma revolução, demonstrando que o movimento não levaria a nada. O professor ainda brincou dizendo que a França se sente a dona da revolução, por ter feito a maior delas. Teixeira foi incisivo em relação às críticas dos países europeus em concluir que os árabes não teriam a experiência ocidental para as revoluções, sem uma classe média, uma sociedade civil que assegurasse a passagem para a democracia e que, por isso, cairia diretamente em uma ditadura pior do que é agora.
Uma outra crítica do professor foi em relação ao poder das redes sociais nos levantes da região. Segundo ele, houve uma charge em que o ditador egípicio deposto Hosni Mubarak tomava o rumo do exílio sobre um camelo e pergunta no meio do deserto o que é o Facebook. Esse raciocínio queria reforçar que essas seriam revoltas exclusivamente de jovens e baseada nas novas mídias porque, novamente, sem uma sociedade civil forte para os padrões ocidentais, teria que haver outra ferramenta – conhecida pelo Ocidente – para se fazer a revolução. De acordo, com Teixeira, essa associação dos levantes árabes com o Facebook e outras redes sociais, veio exatamente no período de grande campanha publicitária para o Oscar do filme homônimo, dirigido por David Fincher. Ele não descartou o poder das redes sociais, dando-lhes até um papel fundamental na divulgação do movimento e lembrando outros meios de comunicação em outras revoluções, mas fez duas ressalvas. A primeira em relação ao tamanho dessa divulgação, lembrando que pouca gente – comparada com o Brasil, por exemplo – usa internet no mundo árabe; e a segunda dando à TV Al Jazeera um papel mais preponderante, por ser uma televisão livre, não censurada, baseada no Qatar, e da sua audiência bem mais significativa que a internet.
O professor Meihy também se disse impressionado com a surpresa dos países estrangeiros com essas revoltas árabes. Para ele, o processo não é exatamente novo, mas uma consequência da situação social desses países desde o fim da Guerra Fria. Meihy citou o historiador libanês Samir Kassir que escreveu em 2003, por ocasião da invasão do Iraque, um livro em que reclamava do estágio de letargia da sociedade árabe e falava da “impotência do querer ser” árabe. Segundo Meihy, Kassir morreu em 2005 de causas não muito bem explicadas, mas conseguiu lançar novos olhares sobre a ocupação estrangeira na região. O professor lembrou que logo no início dos anos 1990, houve a guerra do Golfo, e a crescente insatisfação da população com a invasão estrangeira. Ele também citou um início da escolarização em massa a partir dessa data, que se transformou como uma ferramenta da nova geração, com a formação de uma nova classe média, inclusive dentro do Exército – que é uma instituição única dentro da sociedade árabe de ascensão social rápida. Ele lembra também o crescimento do intercâmbio internacional com a presença de ONGs na região. O espaço que era fechado, diz ele, vai se abrindo aos poucos.
O caso da Líbia, um Estado que retira quase 70% de sua receita do petróleo, é exemplar. Kadafi chega ao poder por meio de um golpe militar em 1969, aos 27 anos, instituindo um estado islâmico e ignorando a política externa. Ele é um oficial líbio formado em História e Ciências Políticas e cheio de carisma. Diz-se um herdeiro do líder egípcio Nasser e prega o conceito de panarabismo. É recebido com desconfiança pela comunidade internacional e, quando Nasser morre, toma para si o papel de líder dessa empreitada. Entre 1973 e 1975 escreve o “Livro verde”, em referência à cor do Islã. Em três volumes, Kadafi critica conceitos como a democracia, chamada por ele de “embuste” e cria outros, como (em transliteração livre) Jamahiriya, que quer dizer “era das massas”, em contraposição da Jumhuriah, que quer dizer “república”.
Sem os investimentos sociais provenientes do dinheiro do petróleo, a partir de um controle mais rígido dos preços internacionais, a oposição ao governo cresce naturalmente, especialmente o ativismo muçulmano. Kadafi, por sua vez, tenta, então, acabar com o isolamento da Líbia e troca a proposta panarábica por uma de panafricanismo. Para culminar toda essa mudança de comportamento, em 1994, Kadafi escreve o “Livro branco”, em que ele apresenta uma solução definitiva para a questão Israel x Palestina, ao endossar a criação de um Estado só com os dois países. Pela primeira vez, Kadafi admitia que fosse possível conviver com os judeus no Oriente Médio.
Meihy diz que Kadafi era tolerado até esse ano por conta de seus bons contatos e contratos com grupos internacionais, principalmente europeus, como na Itália. O professor acredita que essa “Primavera dos povos árabes” terá um impacto na crise econômica que se apresenta lá na Europa, com um aumento do fluxo de imigração para o continente. Por isso não pode ser uma coincidência a França – a primeira nação a criticar abertamente a segunda invasão ao Iraque pelos EUA – se posicionar como a líder dos ataques à Líbia.
Essas críticas à suposta incapacidade do mundo árabe de promover uma revolução, segundo o professor Francisco Carlos Teixeira, são reflexo de falas dos anos 1960 dos países do Norte da Europa e os EUA sobre a América Latina e o Sul da Europa (Portugal, Espanha e Grécia), no período em que esses países passaram por ditaduras. O Norte afirmava que esses países não tinham feitos suas revoluções, não tinha constituído sua classe-média e estavam condenados à ditadura. “Essa é uma má-leitura weberiana”, diz Teixeira, citando o sociólogo alemão, lembrando sobre a instituição da democracia, segundo a tradição anglo-saxã, como uma regra a que todos deveriam seguir. “É preciso acabar com essa ideia de que se não é igual não vai dar certo”, concluiu.

Esta notí­cia foi publicada em 05/04/2011 no sítio revistadehistoria.com.br. Todas as informações nela contida são de responsabilidade do autor.
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